terça-feira, 5 de abril de 2011

Texto interessante! O hábito de filmar cretinices

Ao registrar em aparelhos eletrônicos cenas que vão do cândido ao brutal, usuários exibem o misto de triunfo e culpa diante da teia de acontecimentos que compõe a vida.

O exercício da futurologia é o caminho mais curto para se dizer bobagens. Quem tem a minha idade, que nem é tanta assim, viu o mundo se transformar muito, e hoje podemos ver que as previsões que nos venderam sobre o futuro eram ridículas. Todos erraram, tanto no campo social como no tecnológico, ninguém sabia mesmo para onde estávamos indo. O mundo dos Jetsons não aconteceu, e o que realmente chegou revolucionando como tecnologia era bem outra coisa. Pelas espaçonaves e os robôs vamos seguir esperando, mas já temos os computadores, a internet (esta sim, ninguém tinha nem sonhado) e, acredito, o mais famigerado: o celular.

O celular não parecia tão revolucionário quando chegou, pois seu pai, o telefone, já existia desde a virada do 19 para o 20, mas ele é um das geringonças que nos fazem ser diferentes. A rapidez com que sua posse, quase aristocrática anos atrás, passou para massiva é extraordinária. Hoje o país tem um número igual de habitantes e de celulares habilitados. O fato é que ele se tornou algo tão indispensável como irritante. Poucos objetos são tão úteis e uma praga ao mesmo tempo. Eu o critico, mas não abro mão dele sempre ao meu lado. Veio para ficar, e não há o que fazer. Somos achados e achamos todos, e rapidamente ele nos permite sair de apuros. Nos plugamos voluntariamente a uma máquina que possibilita que rastreiem nossa vida.

Pouco a pouco, o celular foi ganhando poderes. Depois do básico, a capacidade de qualquer um ser encontrado a qualquer hora, ele foi acrescido de uma câmera e, desde então, ninguém mais teve paz. Pior, antes ele só fotografava, agora também filma. Como seria previsível, há um exagero nisso: graças a essas câmeras crimes foram solucionados, cenas inesquecíveis foram registradas, mas para cada lance sublime existe um número centuplicado de imbecilidades.

Uma das fantasias mais pregnantes do estado totalitário é o “Grande Irmão” de 1984, de Orwell, onde a Teletela, um aparelho de TV que permitia tanto ver como ser visto, fixou a imagem mais popular do que seria um estado opressivo: ser visto em qualquer momento, sempre vigiado. Tanto que as câmeras de segurança, para certas pessoas, dão uma idéia de ser vigiado além da conta, passam um mal estar difuso. As câmeras dos celulares são o mais próximo desse olhar onipresente. Em qualquer lugar, a mínima bobagem que você faça pode estar sendo gravada e não vai para um arquivo pessoal, mas para uma vitrina total que é o Youtube. A maior parte disso é pura bobagem, diversão barata, mas existe um lado perverso. Por exemplo, filmar uma surra que um bando de cretinos aplicou em alguém por diversão noturna a perpetua, de tal modo que a vítima fica exposta a ela intermináveis vezes. Assim ocorre com os jovens, que, em um momento entre o etílico e a idiota, querendo mostrar uma desenvoltura que não têm no sexo, acabam arranjando uma dor de cabeça e uma péssima reputação eterna. Alunos que sofrem bullying sofrem o agravante de ter sua humilhação perpetrada na rede.

Uma das questões que isso coloca é tão interessante como difícil de explicar: por que cenas de transgressões são gravadas? Isso é tanto mais difícil de compreender considerando que elas são a prova de um ato ilícito, muitas vezes criminoso, e em quase todas covarde. Por que alguém faria ou deixaria que fossem feitas provas contra si mesmo ou contra o seu grupo? A resposta óbvia é que isso serve para poder mostrar, exibir o ato para mais pessoas, multiplicando a sensação de poder exercido pela força. Numa sociedade de império da imagem, faz todo sentido e torna o fato ainda mais real se for filmado. Mas essa resposta não me satisfaz de todo. Acredito que uma das razões é que se filma para não se estar na cena.

As câmeras, filmando ou fotografando, possibilitam uma função que passa despercebida: servem também para estabelecer uma distância frente ao que está ocorrendo. Quem filma está e não está ali, fazer o registro é estar fora e dentro ao mesmo tempo, mas mais protegido da cena, tanto da beleza como no seu oposto, a brutalidade. A lente permite uma alienação positiva: quando a realidade é demais, o registro dela nos coloca num outro lugar. Por isso enquanto turistas tiramos tantas fotos, pois o novo nos desequilibra numa medida em que não conseguimos dar conta. Invadidos por imagens, que por sobrecarga não assimilamos, guardamos um pouco de assombro para mais tarde. Muitas vezes, em ocasiões sociais, aquelas pessoas com mais dificuldade de participar ou sentir-se parte do grupo tornam-se os fotógrafos da ocasião.Dessa forma, participam da festa, mas a vêm de fora ao mesmo tempo.

Esse mesmo raciocínio serve para o vandalismo. Alguém nesse grupo não é ou está tão idiotizado pelo ato, e como que para distanciar-se do que lhe altera a sensibilidade, filma. Esse registro serve como prova do “triunfo” e marca da culpa ao mesmo tempo. O mesmo raciocínio vale para um terceiro que apenas presencia a cena e a filma. A princípio, ele não é vítima nem agressor, apenas está ali por acaso na hora em que as coisas acontecem. A filmagem permite que ele seja não tão passivo, afinal, faz alguma coisa. O contrário seria apenas ser testemunha duma brutalidade, na qual, se interviesse, poderia acabar como vítima também. Filmar é um ato menos covarde do que se omitir. Assim ocorre nos grandes acontecimentos, como mostra a participação de celulares na divulgação da recente guerra no Rio.

Paradoxalmente, o feitiço parece encontrar seu reverso: quanto mais apostamos na impossibilidade de nos escondermos, pois estamos expostos ao olho do celular que tudo vê e divulga, passamos a utilizar esse mesmo recurso para distanciar-nos da cena. Ao filmar e fotografar, estabelecemos um anteparo entre o acontecimento e nós, afastamo-nos um pouco da posição de protagonistas. Pode ser uma das formas de alienação, das tantas que temos tido oportunidade de exercer, mas passar da condição de atores para a de diretores coloca-nos numa relação mais autoral com a realidade: quem filma de alguma forma edita um pedaço dos fatos, seleciona o trecho mais eloquente e, assim, sem querer querendo, se posiciona.




POR MÁRIO CORSO PSICANALISTA,
CO-AUTOR DE “PSICANÁLISE NA TERRA DO NUNCA 
ENSAIOS SOBRE A FANTASIA” (PENSO, 2010)

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